segunda-feira, março 29, 2004

Uma questão de inocência...

Domingo, logo a seguir ao almoço.
Parado numa qualquer paragem de autocarro ou camioneta, esperam-me minutos de desespero. Penso: "Foda-se, mas quando é que o filho da puta da camioneta chega"?...
Entretanto, acende-se no meu cérebro uma memória, esquecida nas brumas do tempo e reavivada por conveniência: hoje há feira num sítio qualquer da cidade e o trânsito deve estar caótico! Nesse mesmo momento, enquanto aguardo o meu destino com a determinação que só o coração dos mais fortes aguenta, enquanto a minha mente rebusca uma visão que me sirva de impulsionador para aguentar uma espera infinita, enquanto as aves percorriam as pedras da calçada na, por vezes, vã tentativa de um côdea de pão, chega uma mãe, acompanhada do seu rebento.
Num olhar, vislumbro alguma tristeza na face da criança. Teria vindo da feira e o seu ardente desejo de um brinquedo novo não teria sido correspondido? Teria feito alguma coisa menos boa, que instigasse na sua mãe uma repreensão mais dura ou, quem sabe, mesmo física? A resposta não tardaria a chegar. Num ápice, a criança sussurrou algo ao ouvido da mãe, algo que não deveria ser partilhado com todos os que, naquele preciso momento, estavam naquele local, ansiosamente aguardando que a sua espera quase infinita tivesse um fim. Mas não, a mãe não guardaria segredo, e ainda bem que não o fez. Tive, então, a felicidade de partilhar um momento que instantaneamente me recordaria os meus tempos de catraio.
Queria ser um super-herói. Não pela habilidade ou faculdade de saltar altos edifícios de um só salto, ou de ser mais rápido do que uma bala, ou de ser mais poderoso que uma locomotiva. Não, não eram esses os motivos que o moviam na sua demanda pelo endeusamento, quem sabe, pela imortalidade.
Tudo o que interessava era não deixar que as pessoas, à noite, dormissem nos vãos de escada dos prédios onde a nova burguesia degusta o seu repasto. Era não deixar que as pessoas tivessem de perder toda a réstea de humanidade, de humildade ou de carácter e passassem os seus últimos dias de vida, de mão esticada, apelando ao bom coração de todos quantos sentem pena, esse sentimento que nunca deveria existir, que substitui a compaixão com requintes de malvadez, apelando, dizia eu, por uma mísera esmola que lhes permita comer um pão, para além daquele que o diabo amassou. Era criar um mundo de felicidade, onde todos tinham trabalho, todos tinham saúde, todos tinham dinheiro, todos eram ricos e felizes... E as crianças não eram obrigadas a trabalhar, e os jovens não deitavam a sua vida fora em troca de um punhado de pó branco, e os velhos não eram abandonados pelos seus e votados à maior das turturas letárgicas, que é ser esquecido por quem lhe deve a vida, e tudo era belo, todos eram felizes, e ele também...
Por isso, e só por isso, queria ser super-herói...

Afinal de contas, é tudo uma questão de inocência...

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