Gostaria de começar por dizer que não podemos negar, não agora, a nossa espinha dorsal latina. Nós, mais do que todos os povos do Mediterrâneo, mais ainda inclusivé do que os habitantes de Roma, não podemos negar que somos os verdadeiros descendentes dos Civitas Romanae, os cidadãos de Roma.
Pois nós, por cá, queremos é pão e circo, tal como o queriam as 50 mil almas que se deleitavam no Coliseu enquanto o Senado decidia por eles...
Surge isto a propósito de um evento ao qual assisti durante o pretérito fim de semana, na freguesia de S. Miguel de Anreade, concelho de Resende, evento esse que mais não foi do que a celebração do orago padroeiro da freguesia.
Resende é, pelo que pude ver até à data, uma terra de gente forte, gente que trabalha a terra, gente que sobrevive à miséria que se instala, gente que procura o melhor para si e para os seus. É uma terra de gente de coragem e de fé...
Mas não habita em Anreade a vontade de fazer grande uso do maior dom que a Natureza nos deu: o livre-arbítrio.
Não querendo fazer uma análise sociológica ou mesmo filosófica, existem certos pontos que, na minha forma de ver as coisas, me deixam assombrado com o poder que a fé tem sobre os homens: para o bem e para o mal.
Os habitantes de Anreade, uma das maiores freguesias periféricas de Resende, substancialmente empobrecida nos últimos anos, pois a sua principal forma de subsistência é a agricultura, dão - como darão em milhares de lugares, aldeias e freguesias de Portugal - esmolas atrás de esmolas para a paróquia. Esta, pelo menos uma vez por ano, organiza as festas em honra do orago, onde gasta balúrdios com os preparativos (já nem falo das decorações das estradas, nem no fogo de artifício, nem sequer dos andores ricamente decorados com as mais frescas e formosas flores...), especialmente com os "conjuntos" que alegram a noite e o dia.
No sábado à noite, durante a actuação de um dos conjuntos musicais (bom, por sinal, pese embora não ser estilo musical facilmente tolerável pelos meus canais auditivos...) dei comigo a pensar: "como é que esta gente é brutalmente vilipendiada por quem mais devia prestar auxílio aos necessitados e carenciados em troca de uma noite de farra? Que dicotomia é esta entre o sagrado e o profano? Quem troca uma côdea de pão por um pézinho de dança?"
No dia seguinte, durante a procissão, vi o que de mais vil pode existir na fé dos Homens: a inveja - porque fulano foi à procissão também tenho de ir - homens e mulheres que, durante a vida não demonstraram nem um pingo de amor ao próximo, mostravam-se, naquele momento, a todos como os mais crentes de todos.
Mas o pior foi ouvir o pároco dizer aos altifalantes que abençoava todos os que tinham contribuído monetariamente para a festa, olvidando todos os outros. Afinal, ainda se compram lugares no Jardim do Éden?
Depois lembrei-me da nossa herança romana: nós queremos é pão e circo! Nós queremos é que não nos chateiem! Nós queremos é ficar aqui, no nosso cantinho, aninhados entre a imundície e a podridão sem ser chamados a tomar uma atitude! Nós não queremos ser activos! Nós queremos tudo e não fazemos nada!
Nós somos, como o éramos durante a Pax Romana, "um povo que não governa nem quer ser governado..."
Enquanto nos derem pão e circo...